quinta-feira, novembro 24

Sangue do meu sangue

Decidi ir ver este filme enquanto ouvia uma entrevista a Anabela Moreira, uma das atrizes principais, no programa Fala com Ela na Radar. Sou um fã assíduo da Inês Menezes, e sempre que posso escuto o programa. Acontece que nesse dia apanhei o programa a meio, sem saber quem estava a ouvir, mas quando comecei a ouvir falar do último filme de João Canijo fiquei imediatamente interessado.

Ao falar sobre o filme Anabela refere que planeou viver quinze dias na casa onde se rodou o filme, acabando por ficar três meses. Tempo que passou entre vários sentimentos, angústia, medo, empatia com os vizinhos do lado. Começou com a casa inteiramente abandonada e em condições deploráveis onde Rita Blanco apanhou sarna no primeiro ensaio. Ao longo do tempo a casa foi sendo restaurada e mobilada de forma a poder servir de lar às personagens do filme.

Admiro imenso a capacidade que os verdadeiros atores têm de entrar na pele de um personagem. Deixar de ser eu para começar a ser ele. Não falo só de vocabulário, sotaque, ou gestos. Falo também em mudanças físicas, engordar ou emagrecer, ficar com uma pele pouco saudável. Trazer na fronte a marca de uma tristeza que está ancorada nos sentimentos de alguém que não somos nós.

Quando entrei na sala as minhas expectativas eram altas. Até me dei ao luxo de escolher a versão longa do filme. Valeu a pena. Quando o intervalo apareceu eu estava completamente colado à cadeira, olhei para o relógio e já tinham passado quase duas horas... O espetador é transportado para o Bairro do Padre Cruz, torna-se mais um dos vizinhos, um dos habitantes daquela casa. Vários truques cinematográficos para isso contribuem, os planos com múltiplas cenas e reflexos, os constantes diálogos cruzados nem que seja com o barulho dos vizinhos obrigam-nos a estar sempre extremamente atentos. Os cenário são magníficos, perfeitos, porque não são cenários. São as casas e as ruas do bairro. Os figurantes são os habitantes do bairro. A fotografia dá o suporte técnico para que a fealdade deste mundo se torne bela quando foca de perto os dramas pessoais das pessoas.

Mas voltando aos atores e à sua relação com os personagens, as interpretações são magníficas, com especial destaque para os membros da família. O sentimento de realidade, nua e crua em que mergulhamos é amplificado quando nos reconhecemos no dia a dia familiar. Há muitas coisas que parecem estranhas de início, mas todos somos estranhos não é? A longo do filme o argumento vai-se desenrolado e a história acabar por contorcer-se de tal forma que se assemelha ao enredo duma telenovela venezuelana. Mas mesmo assim o sentimento de realidade e de empatia com as personagens não é suspenso. Aproximamos-nos cada vez mais duma conclusão inexorável, a vida continua, é preciso ter força fazer o que é preciso.

Para mim este filme está à altura de grandes obras do cinema dos últimos anos, como Magnólia e American Beauty. E comparo-o diretamente com eles porque trata do mesmo tema, da natureza humana e dos grandes dramas que estão encerrados no simples quotidiano do dia a dia.

quarta-feira, junho 1

Opinião

Podem me prender, podem me bater
Podem até deixar-me sem comer
Que eu não mudo de opinião.
Daqui do morro eu não saio não, daqui do morro eu não saio não.

Se não tem àgua, eu furo um poço
Se não tem carne, eu compro um osso e ponho na sopa
E deixo andar, deixo andar

Fale de mim quem quiser falar
Aqui eu não pago aluguel
Se eu morrer amanhã, seu doutor
Estou pertinho do céu

Podem me prender, podem me bater
Podem até deixar-me sem comer
Que eu não mudo de opinião

Daqui do morro eu não saio não, daqui do morro eu não saio não...

Podem me prender , podem me bater, que eu não mudo de opinião, que eu não mudo de opinião...

Opinião - Nara Leão

terça-feira, maio 10

Não Te Deixes Roubar

Não tive oportunidade de participar no Protesto da Geração à Rasca, um evento que se revelou um enorme sucesso. Com algumas fontes a reportar a presença de 500 mil pessoas. Mais do que um verdadeiro protesto este evento pareceu um espécie de festival para miúdos e graúdos. As pessoas sentem-se incomodadas com a situação em Portugal e precisam de exteriorizar a sua revolta. Mas realmente as propostas e as reivindicações que poderiam ter saído de um fórum assim nunca se chegaram a materializar.

No passado 25 de Abril sim tive oportunidade de comparecer ao tradicional desfile que desce a Avenida da Liberdade. A comparação com a manif anterior era inevitável, e a conclusão nada animadora. O fim de semana grande afastou os comuns mortais da luta, ficou a malta proletária que habitualmente frequenta estas coisas. É pena que tão depressa nos tenhamos esquecido do poder do protesto.

De qualquer forma aqui fica o registo fotográfico desse dia. Gostei bastante do resultado, a técnica fotográfica usada acabou por combinar muito bem com o tema. Trata-se de filme de slide revelado com o processo cruzado. Além disso foi usado um filtro polarizador que ressaltou ainda mais as cores. O título deste desabafo corresponde a um dos registos que gosto mais do conjunto, onde um verdadeiro veterano da luta nos chama a atenção a todos.

sábado, março 19

Ontem & Hoje

O final do ano é sempre uma altura de balanço, avaliar a nossa direcção, avaliar se os nossos objectivos se aproximam ou afastam. Desta vez estas considerações só me assolaram já entrado o novo ano, e através de um processo lento de introspecção cheguei a uma conclusão que já conhecia. Quero e preciso de criar para me sentir bem, talvez ainda não tenha encontrado o meio, ou talvez ainda tenha de me aperfeiçoar muito mais, mas sei que é isso quero.

Sintomático deste interregno foi o destino do rolo a preto e branco que carreguei na minha GakkenFlex ainda em 2010. Só o acabei já em Março, depois de fazer uma foto aqui e ali. Embora tenha ficado um pouco desiludido com a revelação do filme (o contraste deixa um pouco a desejar) acho que as fotos revelam promessa para a lente de plástico. As imagens saíram secas e nostálgicas, invocando um passado distante que na realidade não existe.

terça-feira, janeiro 25

Dispersão

Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto
E hoje, quando me sinto.
É com saudades de mim.

Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...

Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.

(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:

Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família).

O pobre moço das ânsias...
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que me abismaste nas ânsias.

A grande ave doirada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.

Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.

Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que protejo:
Se me olho a um espelho, erro -
Não me acho no que projeto.

Regresso dentro de mim
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.

Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.

Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi... Mas recordo

A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.

(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saudades
Dos sonhos que sonhei!... )

E sinto que a minha morte -
Minha dispersão total -
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.

Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.

Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas...
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas...

Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas pra se dar...
Ninguém mas quis apertar...
Tristes mãos longas e lindas...

Eu tenho pena de mim,
Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!...

Desceu-me n'alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.

Álcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em uma bruma outonal.

Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço...
A hora foge vivida
Eu sigo-a, mas permaneço...


Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba...


Paris - maio de 1913.



Mário de Sá-Carneiro
Poemas Completos
Edição Fernando Cabral Martins
Assírio & Alvim
2001